MANAUS
SUBMERSA
A.J.CHIAVEGATO
Sodade
é terra caída
de
um coração que sonhou.
(Catulo
da Paixão Cearense )
Sob
este título,
Manaus submersa,
Hermínio mandou-me
e-mail
e fotos,
onde vive
perto das
enchentes do
rio Negro
escorrendo escuras
águas carregadas
de terra
caída. Por
aqui me
afloram lembranças
do tempo
em que
aprendi gostar
da música
clássica, graças
a um
colega pianista,
tocava Debussy:
eu entrevia
paisagens de
sonhos perdidos
na névoa,
colinas e
águas evanescidas,
luzes a
refletirem em
chãos de
chuva que
lhe atraem
por força
quase mística,
como os
Jardins sob
a chuva,
A catedral
submersa e
o conhecido
O mar,
em tudo
se escorrendo
luar e
névoas do
impressionismo de
Monet e
do poeta
de Verlaine:
Les
sanglots longs
des
violons
de
l'automne
blessent
mon coeur
d'une
langueur
monotone.
{Os
soluços
longos
dos
violinos
do
outono
ferem minha alma
ferem minha alma
de
um
langor
monótono.}
Ouçam,
em
francês,
como
sinos
que
batem,
senha
repetida
pela
BBC
anunciada
que
os
aliados
entravam
na
Bretanha
na
Segunda
Guerra,
6 de
junho
de
1944, 00h15min.
Refiro-me
agora a
Catedral Submersa,
em águas
de uma
imagem indefinida
em ondulações.
Nas origens
a vida
nasce em
água, Deus
pairando sobre
mares e
em fundos
perdem-se
sonhos, e
a vida
vira em
era uma
vez...
Era uma
vez um
riacho, o
nosso, na
fazenda de
meu tio,
escorrendo séculos,
monótono e
ainda está
lá, o
mesmo. Estreito
a se
passar em
pinguela. Em
estiagem, por
vezes, mais
que um
filete de
água a
secar-se
a chupo
de um
boi. Em
normais águas,
não mais
que metro
de fundo,
sem buracos
e pedras,
a se
nadar criancinhas,
sem medos
de cobra.
Nele aprendi
a nadar,
como peixe,
aos olhos
de minha
tia em
pé, postura
de salva
vidas. Pelos
doze anos,
pulei em
piscina e
em susto
descobri que
não sabia
nadar, faltavam-me
as mãos
do ribeirão
a me
empurrar em
a favor
da corrente.
Nele jogávamos
paus, galhos
e barcos
de papel,
dançando e
rodopiando a
sumirem aos
longes em
curvas. Muitos
anos depois,
ao ler
Primeiras Estórias
de Guimarães
Rosa o
conto Audaz
Navegador,
encontrei-me
nele retratado
jogando no
riacho, como
escreve, a
coisa
vacum...(Cf.
Eça de
Queiroz que
escreve em
castiço português:
bosta de
vaca)
embatumada
semi-ressicada,
obra pastoril
, audaz
navegador,
lá se
indo carregado
de coisas
e sonhos
de criança.
Em dias
de verão
e de
exageradas chuvas,
o ribeirão
acordava que
nem gente
quando se
espreguiça e
cai de
cama. Riacho
virava mar,
sem beiras,
praias, sem
fundos, grandioso
e assustador
fosse silencioso
um profeta
que anunciava
um castigo.
Velho Pedro
Pereira, já
pra arriba
dos oitenta
anos, filho
de pais
escravos, cerne
de vida
e em
sabedorias africanas
que traduzo:
precisa respeitar
as coisas,
tudo; rio
tem alma,
deus vive
nas águas,
ontem tá
calmo, hoje
de raiva.
Por experiências
vividas, os
matutos sabiam
direitinho que
lavouras e
casas não
podem fazer
em beiras
e em
várzeas que
um dia
rio leva
embora, cobra
direitos de
foro. Estava
lá escrito
na alma
das coisas.
Vocação de
rio é
correr pros
longes do
mar e
fundos. Casas,
terras caídas
e sonhos
em beira
plantados se
somem em
águas que
nem barquinhos
de papel.
Culpa de
Deus? Quando
tudo criou,
lembram-se?
coisas estavam
uma bagunça
a dar
medo, chamava-se
caos. Deus
fez um
trabalho enorme
para separar
luz e
escuridão, dia
e noite,
sol e
lua, terra
e águas,
pra aqui,
pra lá.
Muito bem,
à terra
deu-lhe
vocação de
firmeza, a
água de
passar, de
correr. Coração
de homem
balança entre
o que
fica e
o que
passa. Deus
fez o
homem de
terra e
água, e
livre, mas
não é
criador, tudo
inventa em
respeito de
que cada
coisa, terra
e água.
Por ignorância,
constroem-se
casas em
areia e
em água,
ou por
necessidade. É
duro ver
os que
plantam sonhos
sem chão,
vidas sem
raízes, à
louca esperança
de que
as águas
não lhe
levem e
que os
ventos não
soprem. Esperam
em nos
homens que
paguem para
deles cuidar.
A gente
faz o
que pode,
dizem em
caras resignadas
e gordas,
embarcando-se
no pecado
do mundo
da omissão,
bola de
neve, de
lama e
de águas
a submergirem
catedrais e
humanas esperanças.