domingo, 10 de fevereiro de 2013

Meu amigo Augusti




MEU AMIGO AUGUSTI
a.j.chiavegato


Primeiro ato.
Cortina. 1917. Ouve-se o tema de Lara ao som da balalaica.
Lara era linda, cabelos cor de sol dançando ao vento, bronzeada, olhos azuis, destinada ao amor por Yuri, tipo Omar Sharif. Por caminhos tortos, casou-se com Tônia, bonitinha, graciosa, filha do Chaplin. Lara casou-se com um romântico revolucionário pro sovietes, cara de palerma, quem sabe, vocação escondida de Superman, chamava-se Pasha. O clima estava tenso entre brancos e vermelhos. Olha ele lá passando panfletos vermelhos. De repente, a cavalaria da PM irrompe empunhando refles em cima da multidão dos manifestantes. Correria, mulheres carregando crianças, velhos caindo, cavalos pulando, um raio de espada desceu na cara de Pasha, corte fundo, óculos caindo, o sangue, a neve.
A revolução. Pasha sumiu. Lara virou enfermeira na fronte das batalhas. E dá lhe bombas pro todos os lados, negos voando arrebentados, braços cortados, pernas virando tocos, alguém berrou levando um tiro no olho e ela acudindo em meio dos gritos. Uma mancha vermelha se alastrava na Rússia, em sangue e na dominação dos bolcheviques .
Um trem bala atravessando a Rússia, esbaforindo fumaças e apitos de uma enorme locomotiva, duas bandeiras vermelhas na frente, dirigindo o general Pasha Strelnikov, na cara uma funda cicatriz, indelével, marcas da injustiça.
Cortina. Sumindo-se o tema do amor de Lara, ouçam-se os silvos da violência.
Segundo ato
Cortina. Década 50. Sem música, não dá tempo.
Era uma vez um cara que chegou à minha vida, Augusti, em 1956. Tímido, quieto, ar doentio. Não me lembro se era bom de esporte, talvez não, forte em estudos de filosofia? Acho que sim, recolhido em humildades. Não era triste, de jeito nenhum, ria discretamente, de longe olhava, nada vendo e tudo compreendendo. Por ele convivi um ano e meio. Fui a Roma sem saudades, carregado de expectativas.
Cortina.
Terceiro ato.

Cortina. Décadas 60-70. Ouve-se “Pra não dizer que não falei das flores.”

Em 1963, voltei de Roma nomeado professor de filosofia em Aparecida, logo me caí em meio aos estudantes, Daniel na toca dos leões, perdi rumo, minhas experiências políticas da Europa atontaram-se, nem comecei a falar, olho me disseram que eu era reaça. A bíblia deles virou o Brasil Urgente, jornal de um frade Josafá, fazer o que, tentei dançar como a música, quer dizer, ao som do Internacional socialista: De pé, ó vítimas da fome... etc. Começos de 64 estourou o bode que já o previa. Em princípio, o golpe foi tênue com Castelo em perspectivas de logo se retomaria o estado de direito. Em 1965 voltei a São Paulo, no seminário central e na PUC. A coisa tava feia, Jecistas me convidavam: padre, vamo quebrar o pau no Largo São Francisco. Uma tarde, dando aula no Sedes Sapientiae ouvia-se troca de tiros entre filosofia-usp e Mackenzie. O Sedes era liderado pela madre Cristina, diabo de hábito, comunistona, como Dom Helder e tantos. Eu, aspirante, noviço de comunismo. Conheci muitos líderes dos estudantes subversivos e alguns meus alunos, sumiram. Por 68 eu estava no meio do fogo na PUC. Medo, tinha. Falava aberto em aulas contra a ditadura dos militares, de 70 a 76 escrevendo em A Tribuna Ilustrada de Campinas. Em minhas aulas, conheci um aluno que era do Dops, conversava comigo, interessado na matéria, eu mandava ver. Seguramente estava fichado no Dops. Dava aula de filosofia sobre humanismos, entre os quais, o marxista, porque não? Nunca fui comunista. Meu chefe de departamento de filosofia, Franco Montoro, disse-me que era melhor mudar o tema para humanismo dialético ateu. Não me impôs, temendo que eu dissesse dele como reaça. Acho que não era, mas já tinha vocação a viver em cima do muro, em futuro, esteve entre fundadores do partido dos tucanos. A esse tempo, pouco conhecíamos de presos políticos, padres e estudantes conhecidos, dificilmente notícias eram divulgadas. Em resumo, ao longo dos 70, passei livre de perseguições, pé-de-ouvidos, pé da bunda, nada. Casei-me em 1975 aí começou-me a tortura. Brincadeira, vivi em dias de méis, mas não muito durou que lhes conto. Foz de Iguaçu, logo após visita das cataratas, peguei meu carro e saí. Um cara vestido de polícia florestal, pediu carona, não dei. Minha mulher: Fofo, dá carona pra esse coitado. Dei ré, o cara entrou atrás, mais dois subiram. Logo senti a burrada que fiz! Voei. Numa curva o guarda pediu: descemos aqui. Parei. Um monte de 38 na nossa cabeça. Levados ao mato e amarrados em árvore, o chefe dizendo: temos que acertar umas contas com você. Respondi: ô meu, que eu fiz?! Ele ainda me amarrando: logo lhe direi que você vai entender. Gelei-me, pensei: é isso, sou professor da PUC. Poucos dias, noticiava-se o assassinato do padre Henrique em Recife, professor como eu. Tô frito! Quando nos tiraram documentos, relógios, dinheiro, sosseguei-me. Estava certo que era só assalto. Voltamos a São Paulo, sem carro, dinheiro e de luas de méis. Minha mulher acho que até hoje tem marcas do que vivemos, eu me virei, disso e de todos os sinais de torturas que não estive, que os guardo no lombo e no coração de todos amigos, ou não, que sofreram pela justiça. E o Augusti? Nunca mais o vi.

Cortina.

Quarto ato.

Cortina. Tempo atual. Um trem voando, apitando em fumaças, por longas estepes sem que vejam horizontes.

Na frente, o maquinista, José Eduardo Augusti, rosto sem cicatrizes, coração vazio de ódio e de vingança. Livre, não de um indulto ou de uma anistia anacrônica, quem sabe que hoje aplaudem os que ontem apoiavam suas torturas. Fui ao encerramento do processo inocentando-o dele post mortem. Ao longo do processo e da comemoração, encontrei-me em meio de uma missa, mais sagrada que nunca vivi, de fraternidade, de justiça, de amor. Não se comemorava paixão, torturas e morte do Augusti. Sua morte traz em si o selo da anistia. Amo os que entregaram suas vidas, mesmo no medo, no pavor, em funda noite do jardim das oliveiras. Amo mesmo os que entregaram tudo e suas vidas por causa da vingança. Vire-se meu amigo misericordioso Deus a julgar os que mataram por causa de uma paixão enlouquecida de justiça.

Cortina. Ouve-se o tema do amor de Lara, baixando, rallentando, explodindo-se no Aleluia de Händel. Na cortina branca projeta-se a Gloria de Bernini. Dissolve-se o Espírito Santo, surgindo lentamente o rosto do Augusti, translúcido.

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