MEU
AMIGO AUGUSTI
a.j.chiavegato
Primeiro
ato.
Cortina. 1917.
Ouve-se o tema de Lara ao som da balalaica.
Lara
era linda,
cabelos cor de sol dançando ao vento, bronzeada, olhos azuis,
destinada ao amor por Yuri, tipo Omar Sharif. Por caminhos tortos,
casou-se com Tônia, bonitinha, graciosa, filha do Chaplin. Lara
casou-se com um romântico revolucionário pro sovietes, cara de
palerma, quem sabe, vocação escondida de Superman,
chamava-se Pasha. O clima estava tenso entre brancos e vermelhos.
Olha ele lá passando panfletos vermelhos. De repente, a cavalaria da
PM irrompe empunhando refles em cima da multidão dos
manifestantes. Correria, mulheres carregando crianças, velhos
caindo, cavalos pulando, um raio de espada desceu na cara de
Pasha, corte fundo, óculos caindo, o sangue, a neve.
A
revolução. Pasha sumiu. Lara virou enfermeira na fronte das
batalhas. E dá lhe bombas pro todos os lados, negos voando
arrebentados, braços cortados, pernas virando tocos, alguém berrou
levando um tiro no olho e ela acudindo em meio dos gritos. Uma
mancha vermelha se alastrava na Rússia, em sangue e na dominação
dos bolcheviques .
Um
trem bala atravessando a Rússia, esbaforindo fumaças e apitos de
uma enorme locomotiva, duas bandeiras vermelhas na frente, dirigindo
o general Pasha Strelnikov, na cara uma funda cicatriz,
indelével, marcas da injustiça.
Cortina.
Sumindo-se o tema do amor de Lara, ouçam-se os silvos da
violência.
Segundo
ato
Cortina. Década
50. Sem música, não dá tempo.
Era
uma vez
um
cara que chegou à minha vida, Augusti, em 1956. Tímido, quieto, ar
doentio. Não me lembro se era bom de esporte, talvez não, forte em
estudos de filosofia? Acho que sim, recolhido em humildades. Não era
triste, de jeito nenhum, ria discretamente, de longe olhava, nada
vendo e tudo compreendendo. Por ele convivi um ano e meio. Fui a
Roma sem saudades, carregado de expectativas.
Cortina.
Terceiro
ato.
Cortina. Décadas 60-70. Ouve-se “Pra não dizer que não falei das flores.”
Em 1963, voltei de Roma nomeado professor de filosofia em Aparecida, logo me caí em meio aos estudantes, Daniel na toca dos leões, perdi rumo, minhas experiências políticas da Europa atontaram-se, nem comecei a falar, olho me disseram que eu era reaça. A bíblia deles virou o Brasil Urgente, jornal de um frade Josafá, fazer o que, tentei dançar como a música, quer dizer, ao som do Internacional socialista: De pé, ó vítimas da fome... etc. Começos de 64 estourou o bode que já o previa. Em princípio, o golpe foi tênue com Castelo em perspectivas de logo se retomaria o estado de direito. Em 1965 voltei a São Paulo, no seminário central e na PUC. A coisa tava feia, Jecistas me convidavam: padre, vamo quebrar o pau no Largo São Francisco. Uma tarde, dando aula no Sedes Sapientiae ouvia-se troca de tiros entre filosofia-usp e Mackenzie. O Sedes era liderado pela madre Cristina, diabo de hábito, comunistona, como Dom Helder e tantos. Eu, aspirante, noviço de comunismo. Conheci muitos líderes dos estudantes subversivos e alguns meus alunos, sumiram. Por 68 eu estava no meio do fogo na PUC. Medo, tinha. Falava aberto em aulas contra a ditadura dos militares, de 70 a 76 escrevendo em A Tribuna Ilustrada de Campinas. Em minhas aulas, conheci um aluno que era do Dops, conversava comigo, interessado na matéria, eu mandava ver. Seguramente estava fichado no Dops. Dava aula de filosofia sobre humanismos, entre os quais, o marxista, porque não? Nunca fui comunista. Meu chefe de departamento de filosofia, Franco Montoro, disse-me que era melhor mudar o tema para humanismo dialético ateu. Não me impôs, temendo que eu dissesse dele como reaça. Acho que não era, mas já tinha vocação a viver em cima do muro, em futuro, esteve entre fundadores do partido dos tucanos. A esse tempo, pouco conhecíamos de presos políticos, padres e estudantes conhecidos, dificilmente notícias eram divulgadas. Em resumo, ao longo dos 70, passei livre de perseguições, pé-de-ouvidos, pé da bunda, nada. Casei-me em 1975 aí começou-me a tortura. Brincadeira, vivi em dias de méis, mas não muito durou que lhes conto. Foz de Iguaçu, logo após visita das cataratas, peguei meu carro e saí. Um cara vestido de polícia florestal, pediu carona, não dei. Minha mulher: Fofo, dá carona pra esse coitado. Dei ré, o cara entrou atrás, mais dois subiram. Logo senti a burrada que fiz! Voei. Numa curva o guarda pediu: descemos aqui. Parei. Um monte de 38 na nossa cabeça. Levados ao mato e amarrados em árvore, o chefe dizendo: temos que acertar umas contas com você. Respondi: ô meu, que eu fiz?! Ele ainda me amarrando: logo lhe direi que você vai entender. Gelei-me, pensei: é isso, sou professor da PUC. Poucos dias, noticiava-se o assassinato do padre Henrique em Recife, professor como eu. Tô frito! Quando nos tiraram documentos, relógios, dinheiro, sosseguei-me. Estava certo que era só assalto. Voltamos a São Paulo, sem carro, dinheiro e de luas de méis. Minha mulher acho que até hoje tem marcas do que vivemos, eu me virei, disso e de todos os sinais de torturas que não estive, que os guardo no lombo e no coração de todos amigos, ou não, que sofreram pela justiça. E o Augusti? Nunca mais o vi.
Cortina.
Quarto
ato.
Nenhum comentário:
Postar um comentário