Está de volta a emoção! E em
grande estilo!
Não é trivial termos um amigo do
Bento XVI e alguém indicado a ser nome de praça, com direito
a busto e tudo, nos contando sua trajetória de vida, suas limitações
e seus pensamentos.
Acho que a maioria já sabe de
quem se trata. Para quem ainda não sabe, e mesmo para quem já sabe,
sugiro que leia até o final da entrevista. Garanto que colherão
algumas lições para a vida.
- Entrei no seminário.
1948-1949. Seminário
Menor Diocesano de Nossa Senhora Aparecida. (Av. Saudades, 705. Caixa
Postal 369. Campinas. SP. Bonde Saudades) .
De
1950-1953, ao anexo do Colégio Diocesano (Rua Padre Vieira.
Bonde Bosque) .
Vivemos
à construção do SIC e ao sairmos para São Paulo, com o Mário
Faria, Hermínio e eu, deram uma de Moisés, de longe vimos Terra
Prometida, nela não entrando.
- Minha paróquia.
Minha paróquia é como as
outras. Todas se assemelham – escreveu
meu amigo Bernanos em
primeira frase de seu Diário de um
pároco de aldeia. Jaguariúna. Uma rua
de cima, uma de baixo, no centro, a igreja. A de cima, rua de entrada
da vila. A contrária mão, saísse da vila, ou da vida, ali o
cemitério. Poucas distrações, além de fazer filhos. Em fins de
semana, os filmes no Odeon. Poucos bares. Nem uma fabriquinha, de
vassoura, de guaraná, de cabo de guarda-de-chuva, como a de pai de
Ifanger, em Indaiatuba que tais progressos, nem zona tinha. Vocações
de padre? Nada. Nem chuvinha por aí Deus regava, passava e caia em
Amparo. Lá, até em pedra germinavam vocações, em analogias que
dizia meu amigo Guimarães Rosa: pra
uns, as vacas morrem, pra outros até boi pega a parir.
Seminarista, um só antes de mim, três depois
mirradinhos, não vingando. Em resumo, acabei sendo o primeiro padre
e único. A câmara cuidou de projeto de rua para mim, uma
praça, no centro, um busto – alguém
em entusiasmos, por projeto de meu pai, presidente da câmara. O
jurídico a que se obstou: não dá,
contraria as clausulas pétreas da Constituição, homenagem inter
vivos, não pode. Data venia ao reverendo, só post
mortem. Esqueceu-se do projeto. O
proponente faleceu, meu pai, quanto a mim por aí vivo passeando, de
jeito nenhum ainda post mortem , em
que pesam ameaços. De resto, nem mais razão persiste para rua,
placa, muito menos para busto, a sol, a chuva e à pontaria dos
pombos, uma vez o referido reverendo ter dado baixa de praça e
pronto ao que tenho dito! de
homenagens póstumas, cumprindo-se a profecia do padre Gomes
dizendo-me seminarista em férias: padre
aqui não vinga. Sei lá se ocê vai dar certo, sei lá ... Dizem
que Pe. Gomes era santo, será que pegou a praga?
- Por que entrou para o seminário?
Sempre quis. De jeito algum de
influência de minha mãe, em que pesam seus sacerdotais sonhos. Em
vocações ajudava em dinheiro pequeno e em orações, um monte. Um
dia, levou à igreja uma quantia mais significativa. Padre Milton
Santana deu-lhe um santinho: A boa
Irma, pudesse ver um filho nas honras do sacerdócio. Como
padre fui-lhe a maior alegria e depois o deixando, a maior tristeza
de sua vida. Em uma e outra situação esteve comigo, firme.
- Quantos anos tinha ao entrar.
Aos 12 anos. Tarde de 21 de
fevereiro de 1948. Levaram meu pai e amigo João das Laranjas, com
seu carro. Sempre se orgulhou ter levado um padre ao seminário,
contando a todo mundo. Não chegou a saber que deixei o ministério.
Morreu antes. Em seu pequeno currículo em matéria de religião,
mostrou-o olhos brilhantes a São Pedro. O velho balançou: falo
com o chefe, sempre com sua mania de dar recompensa pra quem dá um
copo de água... vou ver. Acrescentou
dando uma de difícil , acho que vou
te quebrar o galho . São Pedro
se virou, sem antes de ver João enfiar mão buscando a uma
cervejinha, mais não sendo roupas, bolsos, dinheiros, nem nada.
- Quando deixou do seminário.
Nunca saí dos seminários.
Ordenei-me em 24 de setembro de 1960, em Roma. Por 15 anos, fui
professor e prefeito de estudos em Seminário de Aparecida de
Filosofia , (Rua Barão do Rio Branco, 412, Telefone 8) e no
Seminário Central de Ipiranga, ( Av. Nazaré, 993. Caixa Postal
12.561. Tel. 63-1689). Em Campinas, Diretor da Tribuna Ilustrada,
Diretor dos Cursilhos, assistente do Ovisa, assistente de Equipes
Nossa Senhora, professor na FAI, professor na PUC SP, em outros
menores cursos, conferências, congressos, especialmente em
antropologia filosófica (humanismos) e ateísmo em filosofia e à
literatura. Em 1975 solicitei dispensa do ministério.
- Porque saiu?
Não tinha problema pessoal de
vida, especialmente por mulher. Como sucedido em trabalhos como
padre, por isso, não me foi fácil conseguir a dispensa, sem caso
com mulher. Colegas aconselhavam: inventa. Não! Relatei que estava
vivendo em duas vidas. Em Campinas, uma vida de trabalhos
estritamente sacerdotais e a arquidiocese cada vez mais alargando
funções e atribuições. Em São Paulo, o que me realizava mesmo
era a vida de professor na universidade, embora não escondendo minha
condição de padre, vivia em um meio estritamente leigo. Por outro
lado, colegas largavam o ministério e se casavam, de Campinas, de
São Paulo, de toda parte , aos milhares saiam. Estávamos em pleno
efervescente clima do Vaticano II, em profundas transformações.
Decidi, hora era do sacerdócio de casados, chegava inexoravelmente.
Errei.
- O que aprendeu nos seminários?
Tudo. De meus professores guardo
esforço e generosidade em tempos mais pobres. Nunca lhes imputo de
omissões, de resto, nem a mim. Fiz o que pude ao fundo de minha
imaturidade. Que mais pudesse fazer? Coisa nenhuma, não se pode
julgar a leveza da juventude a partir de adultos em experiência
vivida. Em contrário, julgar é coisa
de velho, não de maturidade, mas de
apodrecimento. Aprendermos velhos a lição com os frutos, quando
maduros, caem. Demos lugar a loucura dos bem-aventurados jovens,
deles é a primavera do mundo.
- O que faltou aprender?
Não sei, nem me interessa, nem me
cuido deste tipo de inventário. Deram-me informações, talvez
poucas, gestos e atitudes, muitas a me conduzirem a criar e inventar
minha vida. Agradeço aos superiores e colegas, a propiciar-me
ambiente de amizade e de responsabilidade. E por aí vou tocando a
vida a meu jeito de ser feliz. Mas, é duro!
- Trajetória profissional após a saída?
Continuei professor, na PUC e na
Fai por 4 anos Antropologia Filosófica/Humanismos. A partir de 1977
fui convidado pelo Mário Faria como diretor do Inocoop Bandeirantes.
Por 25 anos aí estive até seu fechamento em 2002.
- Trabalha ainda?
Aposentado. Estudo e escrevo pra
caramba, apesar de meu AVC. Estou refazendo os caminhos da
alfabetização, em português e outras línguas, o que não me
impede de dar aulas particulares de grego e alemão. A propósito,
sobre AVC. Na vida tudo se aprende, na solidão. Virei-me mudo que
falo, surdo que ouço, pouco compreendo o que as pessoas falam. Neste
isolamento, acreditem, vale a pena descobrir rostos, paisagens do
mundo escondidos à sombra da vida. Viver é uma revelação,
enquanto se respira.
- Família.
Casei-me em com Marilda, loira e
olhos azuis, ao ser-me escolhida, inteligentíssima, apesar de loira.
Dois filhos, Christiano e Adriano, gêmeos, publicitário e
veterinário respectivamente e Beatriz, fisioterapeuta. Todos bem em
suas profissões e casados, 3 netos, Christiano ainda sem filho.
- Recordações mais marcantes do tempo do seminário.
Tantas. Saudades? Claro , risco de
viver do passado. Mas vale, feliz o homem que constrói sua vida em
bases de lembranças que iluminam.
- Com quem conviveu na época que o impressionou positiva ou negativamente.
Negativamente, ninguém. Alguns
professores eram fracos. Mania de bispos achar que padre entende de
tudo, trigonometria, astronomia, grego e sei lá. Bispo diz ao
padre: vai lá, meu filho e manda
ver . Estica mão, oferece anel,
nêgo beija e sai: tô
frito!!!- tripas contorcendo, pernas
apertando. Poucos assim encontrei. Marcaram-me côn. Aniger Melillo e
padre Adriano Van Iersel. Ao ensinar, faziam-nos descobrir gostos e
tendências. Por além de informações, dava-nos um método, de
andar por suas pernas. Tudo se aprende quando se encontra o caminho.
No Central do Ipiranga, padre
Waldemar Martins. Despertava-nos ao gosto da filosofia. Com ele
aprendi a viver com meus alunos.
Em Roma, não cito dos professores
da Gregoriana, hors concours. No Pio Brasileiro, padres, Oscar
Müller, diretor espiritual e Luciano Mendes, junto a eles
respirava-se a vida de Jesus.
- Mágoa?
De jeito nenhum!
- Voltaria no tempo novamente?
Não, tipo de questão
inconsistente. Vivia em plenitude, naquela situação e naquele
tempo. Fosse-me possível refazer os passos de minha vida, a todos
refizesse, menos os que a saudade apagasse. Enquanto dure a vida,
responderei à vocação de ser feliz, doando-me, carregando as
eternizadas razões que por aí construí. De resto, nada
me turbe!
- Dedico-me à Igreja Católica atualmente?
Na linha da pergunta, não,
atuando em liturgias, cursos, etc. Não me é fácil ser um ex-padre
dentro da Igreja. Desde os doze anos, fui formado como padre. Quando
deixei o sacerdócio, desmanchou-se uma inteira vida. Uma ruptura? Em
princípio, tive receios. Aos poucos, fui descobrindo o sentido não
de uma ruptura, mas de um acabamento. O casamento descobriu-me às
claras as raízes do egoísmo que o sacerdócio se velava,
álibi de amar
a todos e amar a ninguém. Apanhei pra
burro! Diante de mim, o amor exigente, não um ideal, mas uma pessoa.
Caí-me em óbvios, amar é despojar
de egoísmos.
Em síntese, nunca fui um leigo,
engajado ou não. Colado a mim, o sacerdócio, primordialmente a
vocação de ensinar e escrever. Inventei minha vida de padre. Em
universidade, em longos tempos de Inocoop, fui fiel a minha vocação,
como outrora os padres operários e hoje os contemplativos, junto aos
homens com palavra que se dê ou por presença fecunda. Por três
anos, Jesus nada escreveu, falou e entregou-se em silêncio, dando o
tempo das sementes, de tantos e tantos que guardam e divulgam sua
palavra e sua vida.
- Minha relação com a religião hoje. A religiosidade do meu tempo e hoje. Igreja de ontem e hoje.
Respondo em conjunto. Em nenhum
momento deixei de amar a Igreja. Hoje, mais plenamente. A impulso de
minha fé, sou levado à universalidade de todos os homens que a amam
Deus ou ao homem. Em Jesus, encontrei minha religião para além de
templos de Jerusalém, de Samaria, de Roma. Jesus contrariou às
expectativas do povo judeu, mesmo dos piedosos, ideais de liberdade,
grandeza e poder, reino de Deus a ser instaurado pelo Messias.
Primeiros cristãos, em catacumbas, esconderam o reino de Deus a
preço de sangue, adormecida a tentação de resgatar
templos dignos do
Deus rei dos reis.
Jesus sempre Jesus reprovara os apóstolos de tentações
de grandezas, pelo contrário, enaltecendo o serviço e o último
lugar. Começos do quarto século, Constantino livrou o cristianismo
das perseguições, logo mais vira religião oficial do império
romano. Cristãos saíram à luz, desmontaram templos pagãos e
coliseus, carregando ouro e mármores a construir igrejas, onde
aprisionar o senhor Deus de Jesus, banido dos corações dos homens.
Volta-se ao templo de Jerusalém pelo próprio Jesus destruído com
sua morte, reconstruído coração do homem, único do templo com
Deus. Por sua vez, papas e bispos investiram-se de poder à altura de
sua dignidade. Erigiram
palácios para abrigar sua infecunda solidão e em especial,
sua pobreza. Roupas
em púrpura e em pêlos de arminho e ainda calçam sapatos Prada,
dignos da profecia do meu amigo Isaias: belos
os pés que anunciam a paz. Cajados
de pastores transformam-se em báculos e cetros sob insígnias dos
reis, apesar em humildades chamarem-se servos
dos servos de Deus. Por tudo me
entristeço, pelo que também me responsabilizo, não mais que
espectador de lamentações, em vez de transformar o mundo de que
sonho.
Por fim, a mensagem de Jesus
supera para além de teologias, de dogmas, de verdades que se
cristalizaram. Valeram e valem a iluminar a única lei e sentido de
nossa vida: do amor. De resto, a definição de Deus em Jesus supera
o ser, o ter, o que querer absolutos de Javé. Em Jesus, dá-se a
fantástica revelação de que meu
Deus é pobre, aniquila-se em poderes e
grandezas, para emergir o amor que dá e se entrega. Em sínteses de
minha vida, chego a definição de
Deus em comunhão: ele é uma verdade que
se encontra a mim quando, me dei, me entrego, amo. Quer
dizer, reciprocidade em comunhão.
Não renego verdades do passado.
Deixo-as em parênteses todas as que me separam aos irmãos cristãos
e aos homens de coração reto. Amo-os também meus amigos ateus que
em seus olhos bilha meu Deus a que eles negam. Vou construir em
poucas tábuas a arca, a minha, navegando aos mares de Deus, ali num
canto, Jesus, mesmo dormindo... Como comecei citando o Diário de
Bernanos, encerro: tudo que errei, tudo que acertei, entrego-me em
abandono nas mãos daquele que em tudo cai: que
importa? Tudo é graça.
Augusto José Chiavegato
Aí está a história de uma
pessoa que muito fez render os talentos recebidos. Mesmo tendo o AVC
podado-lhe algumas capacidades físicas, não se entregou e se
desdobrou para nos brindar com suas respostas. Muito obrigado
Chiavegato.
Conclamo a todos que utilizem o
espaço reservado aos comentários para transmitir suas impressões
sobre a entrevista. Só não esqueçam de identificar-se, caso
comentem como anônimos.
Como vocês leram, ainda estamos
abertos a publicar as entrevistas recebidas. Portanto, ainda é
tempo. Que os indecisos deem-nos o prazer de conhecer as suas
respectivas histórias.
Até uma próxima intervençao.
J. Reinaldo Rocha(62-67)
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