sexta-feira, 22 de junho de 2012

Manaus Submersa


MANAUS SUBMERSA

A.J.CHIAVEGATO

Sodade é terra caída
de um coração que sonhou.

(Catulo da Paixão Cearense )


Sob este título, Manaus submersa, Hermínio mandou-me e-mail e fotos, onde vive perto das enchentes do rio Negro escorrendo escuras águas carregadas de terra caída. Por aqui me afloram lembranças do tempo em que aprendi gostar da música clássica, graças a um colega pianista, tocava Debussy: eu entrevia paisagens de sonhos perdidos na névoa, colinas e águas evanescidas, luzes a refletirem em chãos de chuva que lhe atraem por força quase mística, como os Jardins sob a chuva, A catedral submersa e o conhecido O mar, em tudo se escorrendo luar e névoas do impressionismo de Monet e do poeta de Verlaine:

Les sanglots longs
des violons
de l'automne
blessent mon coeur
d'une langueur
monotone.

{Os soluços longos dos violinos do outono
ferem minha alma
de um langor monótono.}

Ouçam, em francês, como sinos que batem, senha repetida pela BBC anunciada que os aliados entravam na Bretanha na Segunda Guerra, 6 de junho de 1944, 00h15min.

Refiro-me agora a Catedral Submersa, em águas de uma imagem indefinida em ondulações. Nas origens a vida nasce em água, Deus pairando sobre mares e em fundos perdem-se sonhos, e a vida vira em era uma vez... Era uma vez um riacho, o nosso, na fazenda de meu tio, escorrendo séculos, monótono e ainda está , o mesmo. Estreito a se passar em pinguela. Em estiagem, por vezes, mais que um filete de água a secar-se a chupo de um boi. Em normais águas, não mais que metro de fundo, sem buracos e pedras, a se nadar criancinhas, sem medos de cobra. Nele aprendi a nadar, como peixe, aos olhos de minha tia em , postura de salva vidas. Pelos doze anos, pulei em piscina e em susto descobri que não sabia nadar, faltavam-me as mãos do ribeirão a me empurrar em a favor da corrente. Nele jogávamos paus, galhos e barcos de papel, dançando e rodopiando a sumirem aos longes em curvas. Muitos anos depois, ao ler Primeiras Estórias de Guimarães Rosa o conto Audaz Navegador, encontrei-me nele retratado jogando no riacho, como escreve, a coisa vacum...(Cf. Eça de Queiroz que escreve em castiço português: bosta de vaca) embatumada semi-ressicada, obra pastoril , audaz navegador, se indo carregado de coisas e sonhos de criança. Em dias de verão e de exageradas chuvas, o ribeirão acordava que nem gente quando se espreguiça e cai de cama. Riacho virava mar, sem beiras, praias, sem fundos, grandioso e assustador fosse silencioso um profeta que anunciava um castigo. Velho Pedro Pereira, pra arriba dos oitenta anos, filho de pais escravos, cerne de vida e em sabedorias africanas que traduzo: precisa respeitar as coisas, tudo; rio tem alma, deus vive nas águas, ontem calmo, hoje de raiva. Por experiências vividas, os matutos sabiam direitinho que lavouras e casas não podem fazer em beiras e em várzeas que um dia rio leva embora, cobra direitos de foro. Estava escrito na alma das coisas. Vocação de rio é correr pros longes do mar e fundos. Casas, terras caídas e sonhos em beira plantados se somem em águas que nem barquinhos de papel. Culpa de Deus? Quando tudo criou, lembram-se? coisas estavam uma bagunça a dar medo, chamava-se caos. Deus fez um trabalho enorme para separar luz e escuridão, dia e noite, sol e lua, terra e águas, pra aqui, pra . Muito bem, à terra deu-lhe vocação de firmeza, a água de passar, de correr. Coração de homem balança entre o que fica e o que passa. Deus fez o homem de terra e água, e livre, mas não é criador, tudo inventa em respeito de que cada coisa, terra e água. Por ignorância, constroem-se casas em areia e em água, ou por necessidade. É duro ver os que plantam sonhos sem chão, vidas sem raízes, à louca esperança de que as águas não lhe levem e que os ventos não soprem. Esperam em nos homens que paguem para deles cuidar. A gente faz o que pode, dizem em caras resignadas e gordas, embarcando-se no pecado do mundo da omissão, bola de neve, de lama e de águas a submergirem catedrais e humanas esperanças

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