Eram tempos de
entusiasmos de uma teologia adolescente em portas de Concílio, ele,
meu amigo, Ratzinger, o perito. Eu
acompanhava Dom Paulo, arcebispo de Campinas, em idas e vindas
conciliares, eu perito? Não, carregador de pasta, nomeado
por sumiço do secretário em
gozos turísticos. Praça
de São Pedro, as gentes-formigas, a missa de
abertura, padres e bispos a dar com pau, Vem, Espírito
Santo, dá um jeito! – rezava-se e os
encontros na Domus Mariae onde se reciclavam os bispos,
uns ainda em poeiras tridentinas. Por lá estivemos, meu amigo
Ratzinger, bom teólogo, mas ainda sem as
oportunas famas.
Pelos anos
1959-61, de novo juntos. Ele, professor de
teologia em Bonn e eu em passeios. Bonn
não era grande, o que tornava possível tê-lo encontrado em
livraria, Grüss
Gott, Vater!,
em igreja, onde concertos se davam, não perdia um, em
sendo de graça, ou em fundos de igrejas
onde rezava, sendo de boas piedades naquele tempo.
Ou, quem sabe, em missa que celebrasse,
eu assistindo? Ou, na feira, no centro,
ao lado da igreja? Um dia, ao portal da
Universidade, um atropelamento. Cruzes, subiu
dois metros acima e estatelou-se, ao chão dando as costas e virando
alma. Vi o ajuntamento do povo. Não era padre ainda, não
cuidando de extremas-unções, ali jazente o morto e as
muitas piedades, coitado! em
caras alemãs, que
coisa! – dizendo
uns, era
jovem, fosse casado, pai?, não
se sabia, em estáveis silêncios o que ali estava e já
se tendo ido pro lado de horizontes cinzas e frios. Não
sei se à vítima acudiu meu amigo Ratzinger em serviços
sacerdotais, animando-o nas últimas viagens. Se com ele
me encontrar, vou disso lhe falar. Se
por la estava, vai se lembrar, ah vai! que coração de
homem não esquece morte que pelos caminhos da vida encontrou. De
todas me lembro. A primeira, de meu avô.
Tinha sete anos. Dela guardo dia, hora e
outras circunstâncias, meu avô ali, o imóvel, mãos
uma sobre outra, de que cuidara minha mãe detestando
defunto de mãos postas, fosse rezar. Nada
de terço – dizia.
O
inútil enfeite! – essa,
minha mãe, as sábias inflexibilidades. Outra
morte, pouco após logo se deu,
acompanhando o vigário em bênção de defunto, eu carregando livro
e água benta. À sala, o morto, solene
e enorme em caixão preto de franjas douradas,
em cima de mesa, em alturas a dele não se ver mais
que mãos, as enormes mãos, amarelas feito
cera, entrelaçadas em orações
vespertinas, fosse ainda manhã. E assim, de morte em
morte, acostumei-me às tristes horas. Cumpre-me aqui
registrar uma, acontecida nessa época de que estou falando, eu já
padre, coadjutor em paróquia de Colônia. Toda tarde ia
entreter velhos com presença e canções, eles lá em
papos, chá e bolachas, lembrando os passados
tempos e os a vir, os de curtos futuros. Lá conheci um
velho que dias depois teve um ataque cardíaco. Em
não existindo ainda UTI, era ficar em casa e em cama,
encolhidinho, rezando para distrair a pressa
de Deus. Nessa hora das difíceis esperanças,
foram-me chamar. Que levasse violão –
o dele pedido, os santos óleos e a comunhão. Fui, caia
neve em grandes silêncios, eu mais violão em ombro
pendurado, a hóstia contra o peito e os óleos. Confessou
os nenhuns pecados, comungou, ungi-lhe mãos e pés para a
caminhada. Peguei o violão e cantei. Ele sorria
translúcido. Na manhã do dia seguinte, fui ao enterro do meu amigo,
ex-funcionário da companhia de transportes de Colônia. O coral dos
funcionários dele se despedia, “Ich
hatte einen Kamerade” –
a canção que cantavam, a história de dois
companheiros na guerra. Veio uma bala e levou um, e chorava
o que ficou, como
se a mim também me tivesse levado. O
papa conhece essa canção e já a cantou. Em cemitério, em enterro
de amigo, todo mundo vestindo preto, o dia escuro e a neve
caindo, deve ter chorado que a cara de vovó dele só
autoriza ternuras. Juro, que se encontrá-lo, pego o
violão e vamos cantar, não a morte, mas a vida que levamos
em Bonn, o papa e eu, os caminhos cruzados sem
encontro. Longes tempos! Ele ainda
não era
conhecido. Eu já
era desconhecido.
Grüss Gott, Vater!
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