terça-feira, 5 de junho de 2012

O Papa e eu


Eram tempos de entusiasmos de uma teologia adolescente em portas de Concílio, ele, meu amigo, Ratzinger, o  perito.    Eu acompanhava Dom Paulo, arcebispo de Campinas, em idas e vindas conciliares, eu perito? Não, carregador de pasta, nomeado por   sumiço do secretário   em gozos  turísticos.      Praça de São Pedro, as gentes-formigas,  a  missa de abertura, padres e bispos a dar com pau,  Vem, Espírito Santo, dá um jeito! –  rezava-se  e os encontros  na Domus Mariae onde se reciclavam os bispos, uns ainda em poeiras tridentinas. Por lá estivemos, meu amigo Ratzinger,  bom teólogo, mas ainda sem as oportunas  famas.   

 Pelos  anos 1959-61, de novo  juntos. Ele,  professor de teologia em Bonn e   eu em passeios.   Bonn não era grande, o que tornava possível tê-lo encontrado em livraria, Grüss Gott, Vater!, em igreja,  onde concertos se davam, não perdia um,  em sendo de graça,  ou   em fundos de igrejas onde rezava, sendo  de boas piedades naquele tempo. Ou,  quem sabe, em missa que   celebrasse, eu assistindo?  Ou,   na feira, no centro, ao lado da igreja?  Um dia,  ao portal da Universidade,  um atropelamento.  Cruzes, subiu dois metros acima e estatelou-se, ao chão dando as costas e virando alma.  Vi o ajuntamento do povo. Não era padre ainda, não cuidando de  extremas-unções, ali jazente o morto e as muitas piedades, coitado! em caras alemãs, que coisa! – dizendo uns,  era jovem, fosse casado, pai?, não se sabia, em estáveis  silêncios o que ali estava e já se tendo ido pro lado de  horizontes cinzas e frios. Não sei se à vítima acudiu meu amigo Ratzinger em serviços sacerdotais, animando-o nas últimas viagens.  Se com ele me encontrar,  vou disso  lhe falar.  Se por la estava, vai se lembrar, ah vai!  que coração de homem não esquece morte que pelos caminhos da vida encontrou. De todas me lembro.  A primeira,   de meu avô. Tinha sete anos. Dela guardo dia,  hora e outras  circunstâncias, meu avô ali, o imóvel,  mãos uma sobre  outra, de que cuidara minha mãe detestando defunto de mãos postas,  fosse rezar. Nada de terço – dizia. O inútil enfeite! – essa, minha mãe,  as sábias  inflexibilidades. Outra morte,  pouco após  logo  se deu, acompanhando o vigário em bênção de defunto, eu carregando livro e água benta.  À sala,  o morto,  solene e enorme  em  caixão preto de franjas  douradas, em cima de mesa, em alturas a dele não se  ver mais que  mãos, as enormes mãos,  amarelas feito cera, entrelaçadas   em  orações vespertinas, fosse ainda manhã.  E assim, de morte em morte, acostumei-me  às tristes horas. Cumpre-me aqui registrar uma, acontecida nessa época de que estou falando, eu  já padre, coadjutor em paróquia de Colônia. Toda tarde  ia entreter velhos com  presença e canções, eles lá  em papos, chá e  bolachas,  lembrando os passados tempos e os a vir, os de curtos futuros.  Lá conheci um velho que dias  depois teve um ataque cardíaco.  Em não existindo ainda  UTI, era ficar em casa e em cama, encolhidinho,    rezando para distrair a pressa de  Deus.  Nessa hora das difíceis esperanças, foram-me chamar.  Que  levasse  violão – o dele pedido,  os santos óleos e a comunhão. Fui, caia neve em grandes silêncios, eu mais  violão em ombro pendurado, a hóstia contra o  peito e os óleos.  Confessou os nenhuns pecados, comungou,  ungi-lhe mãos e pés para a caminhada.   Peguei o violão e cantei. Ele sorria translúcido. Na manhã do dia seguinte, fui ao enterro do meu amigo, ex-funcionário da companhia de transportes de Colônia. O coral dos funcionários dele se despedia,  “Ich hatte einen Kamerade” – a canção que cantavam,  a  história de dois companheiros na guerra. Veio uma bala e levou um, e  chorava o que  ficou, como se a mim também me tivesse levado.  O papa conhece essa canção e já a cantou. Em cemitério, em enterro de amigo, todo mundo vestindo preto, o dia escuro e a neve caindo,  deve ter chorado que a cara de vovó dele só autoriza ternuras.  Juro, que se encontrá-lo, pego o violão e vamos cantar, não a morte, mas a vida que levamos em  Bonn, o papa e eu,  os caminhos cruzados sem encontro. Longes tempos!  Ele ainda não era conhecido. Eu já era desconhecido. Grüss Gott, Vater!

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